O mês de Novembro encerrou com
um balanço muito positivo pelo Cineclube Paraty: eventos em parceria (como a
participação no Festival Internacional de Cinema de Paraty), a mostra sobre o
Lars Von Trier, que apresentou os quatro últimos longas metragens do diretor,
incluindo as polemicas Ninfomaníaca I e II, e um grande sucesso de público em
todas as sessões. A essa já rica
programação juntou-se à última edição do Projeto Inter_CINE®. O Cineclube Paraty, desde sempre interessado
em levar à sala temas de atualidades e estimular o debate e confronto com os
espectadores, não faltou ao seu compromisso no Dia da Consciência Negra.
Essa data, tão importante para
história do nosso país, não podia passar como um feriado qualquer,
principalmente na cidade de Paraty,que antes de ser cidade turística, teve um
papel importantíssimo na época da escravidão e foi testemunha da passagem de
milhares de negros africanos trazidos para trabalhar nas minas de ouro. Eis
porque esta data merecia uma atenção especial e tinha que ser um momento de
reflexão sobre essa questão ainda bem presente no Brasil, como no resto do
mundo. O que melhor do que o cinema,
para abrir a discussão e oferecer, através de longas metragens de grande
qualidade, mais uma oportunidade de debate?
O Cineclube Paraty decidiu
dedicar não um dia, mas uma semana à Consciência Negra e aproveitou para
promover a oitava e nona edições do projeto Inter_CINE® - Encontro de Intercambio Cultural e
Educacional através do Cinema, já tão bem recebido pelo público nas passadas edições.
Na quarta feira, 19 de Novembro,
com a colaboração da Casa da Cultura, foi exibido o filme “Infância Roubada”,
da Africa do Sul, ganhador do Oscar como Melhor Filme Estrangeiro em 2006.
O
filme retrata a história de um menino, de apelido Totsi, que numa noite, após
sair ganhador de uma sangrenta briga de bar, rouba um carro. Enquanto acelera
pela noite, ele ouve um barulho no banco de trás e acaba sofrendo um acidente.
Na traseira do carro descobre um bebê. Sem saber o que fazer, leva-o para o
gueto de Johanesburgo em que vive. Lá convencerá a jovem mãe Miriam a cuidar de
"seu filho", numa relação que logo provocará mais confrontos. O filme
é um excelente retrato da vida nas favelas em uma das maiores cidade da África do Sul e das contradições entre a
cidade moderna e rica, das elites tanto branca quanto negra, e do abandono que
sofre a população negra dos guetos que com dignidade luta dia a dia contra a
precariedade e a pobreza.
As portas da Casa da Cultura
abriram às 9 horas para receber os alunos do ensino médio do CEMBRA e do CEIP
Brizolão 999, que lotaram a sala e assistiram ao filme. Logo depois do filme, o
Diretor Geral do Cineclube Paraty, Danilo Medeji, chamou no palco os convidados
dessa primeira sessão, o casal Augusto Menezes e Daniela Pavanato.
Eles viajaram para África do Sul
em 2013 com os seus dois filhos e tiveram a ocasião para contar essa
maravilhosa experiência ao redor do país. Depois de ensinar aos estudantes duas
das principais saudações em Zulu (umas das 11 línguas oficiais do país),
mostraram fotos que ajudaram a descrever a viagem, durante a qual eles se
aproximaram de aldeias indígenas e povoadas do interior, mais afastados das
grandes cidades, entrando em contato com a cultura popular sul-africana, objetivo
principal do seu roteiro. Já nessa primeira etapa eles perceberam a forte
discrepância entre brancos ricos que falam inglês e negros pobres, mas também
ressaltaram um aspecto bem presente no filme, a “decência” e dignidade do mais
pobres, o extremo carinho com o qual foram recebidos e a ajuda que lhes deram
nos momentos de dificuldades que atravessaram durante os trajetos nas precárias
estradas do interior do país.
Eles se aproximaram também dos subúrbios de
Johanesburgo, locação principal do filme e puderam ver como a divisão cor -
classe social é ainda muito nítida na estrutura social e permeia todos os
ambientes, assim como a colonização européia nas grandes cidades é muito
gritante. Mesmo com a finalização do regime do Apartheid em 1991 e a chegada à
presidência de Nelson Mandela em 1994, a discriminação contra a maioria negra é
ainda uma realidade.
Uma reflexão nesse sentido foi
feita a propósito do Brasil e da necessidade de superar essas barreiras
divisórias ainda em pé, reconhecer a matriz africana do nosso país a través das
diferentes expressões culturais nele presentes. Foi uma ocasião para Augusto e
Daniela promoverem também as atividades do Maracatu Palmeira Imperial, que há 7
anos em Paraty, oferece um lugar para qualquer pessoa quiser aprender a dançar
ou tocar uns dos instrumentos típicos deste ritmo, originário do Nordeste do
país, mais que claramente tem suas raízes mais profunda no continente africano.
A segunda sessão da Semana da
Consciência Negra foi realizada no domingo 23 de Novembro, pontual como de
costumem às 19 horas na Casa da Cultura. Desta vez foi exibido um filme de
produção norte-americana que foi muito estimulante pelo debate que seguiu.
O filme “Histórias Cruzadas”
(“The Help”) de 2012 se desenvolve em Jackson, pequena cidade no estado do
Mississipi, nos anos 60. Skeeter é uma garota da sociedade que retorna
determinada a se tornar escritora. Ela começa a entrevistar as mulheres negras
da cidade, que deixaram suas vidas para trabalhar na criação dos filhos da elite
branca, da qual a própria Skeeter faz parte. Aibileen Clark, a emprega da
melhor amiga de Skeeter, é a primeira a conceder uma entrevista, o que
desagrada à sociedade como um todo. Apesar das críticas, Skeeter e Aibileen
continuam trabalhando juntas e, aos poucos, conseguem novas adesões.
Um bom público acompanhou as
quase 3 horas de visão e participou entusiasta ao bate-papo com a Luana Antunes
Costa, professora de Literaturas e Culturas Africanas e Afro-brasileira,
tradutora e colaboradora do Cineclube Paraty. A grande experiência da Luana em
questões raciais, não somente em âmbito acadêmico, enriqueceu o debate sobre um
aspecto muito interessante do filme, o clichê típico da questão racial nos
Estados Unidos onde os brancos “salvam” os negros: cheia de bons sentimentos e porém apaixonante, a longa-metragem não quebra com essa construção ideológica.
Luana, entrevistada pelo
mediador e conselheiro do Cineclube Paraty, André Goés, respondeu às perguntas
do público e imediatamente o enfoque da conversa foi para o Brasil e a situação
racial que infelizmente ainda não tem muitos espaços de debate, embora o
racismo seja diário e sistemático. Luana contou ao público algumas anedotas
muito eficazes para entender o fenômeno, episódios que ela sofreu por ser negra
e mulher, e mais uma vitima desse racismo “à brasileira”: um racismo velado
onde o mesmo setor institucional toma conta de reproduzir um discurso racial,
pois, ela reiterou, não tem já no Brasil um racismo pessoal, se não uma
necessidade de enquadrar as pessoas pela cor da pele e de lá desencadear todos
os preconceitos sociais que o acompanham, como por exemplo, negro igual à
pobre.
A participação do público, que
elogiou repetidamente a iniciativa do Cineclube Paraty pedindo por mais
momentos de encontro e debate desse tipo, confirmou mais uma vez que as sessões
e as iniciativas a elas conectadas estão se afirmando na cidade como espaço
pontual de intercâmbio, educação, cidadania e inclusão social e estão
contribuindo para ampliar o panorama cultural da nossa cidade que às vezes
resulta carente de eventos que abram a discussão aos seus cidadãos.